sexta-feira, 16 de maio de 2014

O Iluminismo

Os filósofos do século XVIII só concordavam em um único ponto: podiam discordar, publicamente, usando a razão

Rodrigo Elias
A palavra “Iluminismo” não existia no século XVIII. Nas línguas ibéricas, só apareceu no século seguinte, e a primeira ocorrência em um dicionário na língua portuguesa é de 1836. Difícil acreditar, já de saída, que o século XVIII tenha apresentado um conjunto coeso de ideias, ou uma ideologia unitária que possamos classificar com o sufixo “ismo”.
Em geral, o fenômeno do Esclarecimento é apresentado como um sistema de valores que deu origem ao mundo contemporâneo, para o bem e para o mal, estando na base das grandes transformações políticas, econômicas e sociais a partir do século XVIII. As noções modernas de igualdade, democracia e liberdade são geralmente apresentadas como invenções dos filósofos iluministas, que teriam se desdobrado em vários campos nos séculos posteriores. Por outro lado, pensadores do século XX chegaram a dizer que a eliminação sistemática dos judeus e a exaltação de uma “raça pura” pelos nazistas era um desdobramento lógico da racionalidade fria dos filósofos do Século das Luzes. Segundo o historiador norte-americano Robert Darnton, o Iluminismo está cada vez mais em todos os lugares e pode explicar qualquer coisa em qualquer área de realização humana a partir do século XVIII – trata-se, portanto, de um conceito tão alargado que corre o risco de perder completamente seu poder explicativo.
É fato, entretanto, que letrados europeus da primeira metade daquele século utilizavam metáforas que remetiam à luz da sabedoria em contraposição às trevas da ignorância e, em alguns casos, do despotismo. Esta fórmula, entretanto, não era nova – e também podia ser, em certa medida, uma transposição do processo religioso bem versus mal presente nas tradições cristãs. Esta dualidade está na própria raiz do Renascimento moderno, entre os séculos XV e XVI, sobretudo em sua crítica à Europa da Idade Média ou “Idade das Trevas”. Luz, luzes, ideias luminosas, esclarecimento eram metáforas que os philosophes (como se autodenominavam)utilizavam para caracterizar seu programa – que incorporava, mais do que ideias fixas, uma nova atitude em relação ao conhecimento. Esta atitude está relacionada com o que conhecemos por razão científica.
O livro-manifesto desta nova atitude é O experimentador, publicado por Galileu Galilei em 1623. Este livro, manifesto fundador da ciência moderna, foi inspirado no trabalho do português Estevão Rodrigues de Castro, professor de medicina na Itália, formado em Coimbra em 1588. O livro se chama De meteoris microcosmi (“Microcosmo dos meteoros”) e foi publicado em Florença em 1621. Rodrigues de Castro, dois anos antes de Galileu, reafirmava princípios supostamente sepultados pela autoridade científica acadêmica e religiosa da sua época. O experimentador, por sua vez, escrito de maneira polêmica e opondo-se diretamente ao conhecimento oficial, lançado com uma estratégia de publicidade que incluía o apoio do próprio papa, que aprovou o livro publicamente sem tê-lo lido, teve enorme impacto.

John Locke / Biblioteca Nacional da França
Segundo o filósofo alemão Ernest Cassirer, o século XVIII vai na mesma direção deste manifesto e rejeita terminantemente aquela filosofia do conhecimento (ou epistemologia) confrontada por Galileu no século XVII: a dedução a partir de um princípio incontestável, capaz de ser sustentado unicamente pela tradição. A filosofiada época, ao contrário, adotaria um método essencialmente diverso: a análise (ou crítica). Os philosophestomam como modelo a física de Isaac Newton, exposto em sua obraPrincípios matemáticos da Filosofia Natural, de 1687. De acordo com o físico inglês, os próprios fenômenos da natureza, aos quais o homem é sensível, são os dados. A partir de sua observação e análise, chega-se aos princípios – e não ao contrário, como determinava a tradição.
O historiador alemão Reinhart Koselleck, autor de Crítica e crise (1959), também remonta o problema ao século XVII, no qual esta transformação no método do conhecimento se relaciona com as discussões sobre a vida pública. Para ele, a questão é indissociável da constituição do Estado absolutista em meio às guerras religiosas. A guerra civil na Inglaterra (1642-1651) impediu momentaneamente, segundo ele, a formação do Estado moderno. Mas acabou sendo o motivo do erguimento do Absolutismo, contra o qual, no século seguinte, se formaria esta crítica que chamamos de Esclarecimento.
Acompanhando a consolidação da nova ordem monárquica do final do século XVII, e as teses de pensadores como Thomas Hobbes (1588-1679), Koselleck observa o apaziguamento das forças internas. De um lado, foi estabelecida uma esfera política, própria do rei, destituída do julgamento sobre o que é certo ou errado (ou seja, uma moral), e que obedece unicamente à razão de Estado. De outra, uma esfera privada, que pode ser moral, na qual os filósofos estão livres (embora confinados) para exercer a razão propriamente dita, isto é, o pensamento crítico sistemático.
Assim, no período em que os conflitos religiosos se generalizaram, alguns letrados observaram que a liberdade de consciência – e de crítica – era incompatível com a paz: a discordância pública sobre o que era certo ou errado levaria à guerra. Deste modo passaria a existir uma nítida divisão entre o mundo exterior, político, no qual só quem fala é o monarca, e o mundo interior, em que o indivíduo esconde a sua consciência. É justamente aí, no espaço secreto da consciência, que vai se desenvolver o Esclarecimento.

Gravura da época da Revolução Francesa critica os poderes tradiconais / Biblioteca Nacional da França
O processo do Esclarecimento é a projeção para o mundo público desta nova racionalidade. Isso terá um impacto ainda maior na medida em que o século XVIII vai conhecer uma inédita expansão da alfabetização e um significativo barateamento da produção de textos. Um autor que simboliza esta transposição de atitude de um mundo privado e científico para um mundo público e político é outro inglês, John Locke, através do seu Ensaio sobre o entendimento humano, de 1690. Para ele, a capacidade individual de formar juízo existe independente da vontade do soberano, independente da autorização estatal, e extrapola a consciência individual. A sociedade se submete às suas próprias leis morais, que têm a mesma importância das leis civis (criadas pelo governo). Forma-se, paulatinamente, a chamada “opinião pública”, capaz de definir o que é uma ação virtuosa – que deve ser encorajada; e uma ação viciosa – que é objeto de censura.
A razão, materializada no infinito processo de crítica, legitima a si própria. É este o mundo dos letrados do início do século XVIII, no qual as ideias são evidentemente conflitantes. Mas a atitude de discutir publicamente, por escrito, sobre todos os assuntos se tornaria a regra da atividade intelectual nos países que conheceram o Esclarecimento (daí a impropriedade de um “absolutismo esclarecido”).
É justamente no domínio letrado dos anos posteriores a 1750 que se estabelece uma postura de aberto antagonismo em relação à esfera política. A Enciclopédia, que começou a ser publicada em 1751, sofreu perseguições do Estado francês em 1752 e 1759. Voltaire teve todos os seus escritos proibidos, e viajava de um lado para o outro fugindo das autoridades. A postura crítica, que valoriza os dualismos no processo do conhecimento (o certo x o errado; o verdadeiro x o falso), colocará paulatinamente o próprio exercício da razão como uma prática incompatível com a política tradicional.
A Enciclopédia, maior fenômeno editorial do Esclarecimento, tinha no método, e não no conteúdo de ideais, a sua essência: o conhecimento parte dos fenômenos, que são os dados, para as leis. D’Alembert, que dividiu a organização da obra com Diderot, anunciou no “Discurso preliminar”, que precedeu o primeiro volume da obra: “Todos os nossos conhecimentos diretos reduzem-se aos que recebemos pelos sentidos; de onde se conclui que é às nossas sensações que devemos todas as nossas ideias”.
Se há uma novidade filosófica neste princípio – que norteia a organização da obra – é a sua adoção como programa em todas as áreas do conhecimento. Da física à teologia, passando ao mundo da política. Esta atitude representaria não a enunciação de uma verdade universal no sentido tradicional, o que seria incongruente com o próprio clima intelectual do Esclarecimento, mas uma constatação sobre a impossibilidade de conhecer o mundo sem experimentá-lo.
A Ilustração, ou Esclarecimento, não é um conjunto de ideias: é a atitude de falar publicamente usando a própria razão e recusando as explicações tradicionais. Os resultados deste método nem sempre formam um conjunto coerente e definitivo de ideais – assim como seria incoerente com o Esclarecimento se acreditássemos que as noções correntes de liberdade e democracia devem estar isentas de crítica.

Rodrigo Eliasé professor das Faculdades Integradas Simonsen e autor da dissertação “As letras da tradição: o Tratado de Direito Natural de Tomás Antônio Gonzaga e as linguagens políticas na época pombalina (1750-1772)”, (UFF, 2004).

Saiba mais:
CASSIRER, Ernst. A filosofia do Iluminismo. Campinas: Unicamp, 1992.
D’ALEMBERT, Jean le Rond & DIDEROT, Denis. “Discurso preliminar”. In: Enciclopédia ou Dicionário racionado das ciências, das artes e dos ofícios por uma sociedade de letrados. São Paulo: Unesp, 1989.
DARNTON, Robert. Os dentes falsos de George Washington: um guia não convencional para o século XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Eduerj/ Contraponto, 1999.
REDONDI, Pietro. Galileu herético. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.



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